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Governança e espiritualidade

Por 1 de abril de 2020abril 7th, 2020Sem comentários

Artigo originalmente publicado na Revista de Governança Corporativa, Compliance e Negócios Sustentáveis, coordenado por Ana Paula Candeloro e editado pela Enlaw Portal de Revistas Jurídicas em 2019

Quanto mais o mundo se torna virtual mais relevante se torna o espiritual

O uso de boas práticas de governança tem se ampliado e abarcado um número cada vez maior de organizações de todos os setores da economia. Tendo a empresa o intuito de crescer e se desenvolver, ela precisará dessas boas práticas, independentemente do porte e do setor. Sobretudo, quando há enormes pressões por resultados no curto prazo e um contexto em permanente e contínua transformação nos âmbitos sociais, políticos, econômicos e tecnológicos.

Para lidar com tão grandes pressões e transformações externas uma empresa precisa encontrar seu eixo interno para que, ao se manter conectada à sua essência, possa encontrar um equilíbrio dinâmico na sua relação com o mercado. Pode-se até saber disso, mas para quem está lutando para não ser dragado pelo redemoinho dessa correnteza, isto é, quem está no dia a dia da gestão, essa é uma tarefa difícil. É, portanto, papel de quem atua no âmbito da governança ter essa compreensão clara para dar o devido apoio e direcionamento aos gestores.

Creio ser importante ampliar o significado do termo governança, pois o vejo predominantemente compreendido nas suas dimensões administrativa e regulatória, onde se estabelecem processos, rituais e papéis dos agentes envolvidos, ou seja, na sua dimensão estrutural. Ampliar significa compreender qual o papel da governança em si para a saúde e sustentação da empresa e quais são as fronteiras com a gestão, pois na maioria dos casos, isso não está bem definido.

Se compreender governança na sua essência é desafiador, conectá-la à espiritualidade torna esse desafio ainda maior, pois se trata de outro termo complexo e de múltiplas interpretações. Nosso objetivo com esse artigo, além de trazer algumas definições, é levar o leitor a refletir sobre aspectos que tendem a ser determinantes para a sustentação das organizações, por influenciar na capacidade de renovação e da manutenção de sua vitalidade e resiliência. Aspectos de natureza ética que devem ser repensados de modo que as sistemáticas de compliance estejam assentadas sobre práticas verdadeiras que envolvam efetivamente os integrantes da empresa, e não meramente formais. Aspectos ligados ao contínuo empreender, pois o compliance certamente é necessário, mas não suficiente, para manter a empresa diferenciada no mercado.

 

Contexto

Em termos administrativos nosso último século foi marcado pelo progressivo e bem- sucedido uso de um modo de gestão analítico e racional. A ciência desvelou aspectos que nos permitiram um grande salto de produtividade e inovação que possibilitou que se transitasse de uma forma de gestão meramente intuitiva, onde o dono exercia a sua autoridade com base em suas percepções, seu faro e seus caprichos, para uma baseada em fundamentos que pudessem ser ensinados pelas escolas de administração e aplicados por executivos contratados para dar a devida sustentação às organizações. Porém, como diz a máxima, o que nos trouxe até aqui não necessariamente nos levará até aonde queremos ir.

A forma científica clássica de ver os fenômenos estabeleceu que deveríamos colocar nossa atenção para o que fosse concreto, tangível, mensurável, perceptível aos nossos cinco sentidos. E confinou o que seria abstrato e sutil para os âmbitos das artes e das religiões. Assim, nessa grande separação entre o físico e o sutil, de um lado ficou o relativo à lógica e à racionalidade e de outro o relativo à intuição, à sensibilidade e à fé. Essas duas dimensões deveriam ser abordadas e vividas em esferas distintas, não sendo adequado misturá-las. Dentro do âmbito do sutil, as artes foram sendo associadas à criatividade e ao entretenimento e as religiões foram ficando posicionadas como ligadas às tradições e a questões de foro íntimo.

Mas surgiu um novo tipo de sutil, fruto do próprio desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, que se denominou de virtual. O virtual chegou de forma arrebatadora, conquistando corações e mentes por ser prático e sedutor. Além de ser o representante do novo, ele revela uma das mais criativas ações do pensamento humano e tem trazido uma série de benefícios e facilidades para nossas vidas que tem transformado hábitos há muito estabelecidos e possibilitado enormes ganhos de agilidade e redução de custos de operação das empresas.

O resultante desse mundo organizacional científico e virtual tem sido, por um lado, a possibilidade de uma maior produtividade e competitividade, mas por outro, uma crescente “coisificação” das pessoas e das organizações, tornando a tudo objeto de compra e venda de um mundo quantificável. A frieza e aridez nas relações, com ambientes pouco amigáveis e, em alguns casos, até mesmo doentios (muitas vezes disfarçados de espaços “fofos, bonitinhos e transados”), com formas de comunicação ágeis, porém superficiais, têm sido gerador de perdas de vínculos, da banalização do afeto e de crises de burnout que têm prejudicado a inúmeras pessoas talentosas, afastando-as das empresas.

O investimento em tecnologia não tem tido como contrapartida a avaliação do impacto que ele causa nas pessoas e nas suas relações tanto internas quanto externas às empresas. As questões de ordem ética e da construção de vínculos precisam ser compreendidas a partir de novas perspectivas para dar a devida sustentação ao desenvolvimento humano e organizacional. Assim, se queremos os benefícios que o tecnológico e o virtual nos trazem, precisamos estar atentos ao que é necessário para nos mantermos equilibrados. E para isso o espiritual se torna fundamental.

 

Dimensões da realidade *1

Há um ditado americano que diz: “não pergunte ao peixe sobre a água”, pois ele está tão imerso nesse meio que sequer sabe disso. No nosso caso, para seguirmos adiante, é relevante refletirmos sobre a natureza da “água” em que estamos inseridos, sobre as dimensões da realidade em que vivemos e como as percebemos. Afinal, o mundo em que vivemos se configura conforme nós o vemos.

A dimensão mais concreta da realidade é aquela onde está tudo o que é denso e pode ser captado pelos nossos 5 sentidos, sendo por isso denominada de dimensão sensorial. Nela está tudo o que é do mundo físico, como a natureza, nossos corpos, as casas, as fábricas e seus produtos etc.

1* Agradeço a Joan Melé, um dos fundadores do Banco Triodos na Espanha, antropósofo e estudioso do tema Dinheiro e Consciência, por ter compartilhado esse conceito comigo.

O que está além do mundo físico e, por ser abstrato, não conseguimos captar com nossos 5 sentidos, é chamado de sutil. E nessa dimensão há que se fazer uma importante distinção entre o supra sensorial e o infra sensorial.  Ao primeiro está associado o que é espiritual. Já ao segundo está associado o virtual. A consciência dessa distinção gera uma série de implicações no modo como vemos e lidamos com mundo.

Veja o quadro abaixo:

 

O fenômeno da virtualização, que tem nos ligado cada vez mais profundamente ao infra sensorial, desperta a necessidade de lançarmos um novo olhar para o que seja o mais essencialmente humano, o espiritual, e procurar ver nele outros aspectos que vão muito além das religiões *2. Nesse âmbito supra sensorial estão as origens de nossas inspirações, dos propósitos que nos guiam, dos valores que balizam nossas relações, das imagens de futuro que norteiam nossas ações, e tudo isso tem sido crescentemente compreendido e valorizado.   É nesse domínio espiritual que a Governança Corporativa precisa atuar, como veremos mais detalhadamente.

*2 É preciso diferenciar religião de religiosidade. A palavra religião vem do latim religare e significa se religar a algo. Assim religiosidade, que está presente em todos os diversos povos e culturas humanas, é a busca do homem em se religar a algo maior e transcendente. Já as religiões são formatações sociais de como se buscar tal religação.

A sutilização do mundo

A crescente sutilização pode ser entendida como uma desmaterialização do mundo e tem gerado uma profunda transformação no modo como temos vivido. Observando esse fenômeno, que teve início em eventos como o da invenção do rádio, seguido da televisão e desse para o da era da informática, podemos perceber como temos ampliado a realidade em que vivemos incorporando ao mundo sólido um novo mundo virtual.

O virtual vem conquistando espaços cada vez maiores em nossos cotidianos. O advento dos rádios e das TVs foram em suas épocas transformadores, tanto que seus aparelhos passaram a ocupar um papel central na sala de estar da maioria dos lares e as famílias se reuniam ao seu redor. Com o surgimento da internet, das redes sociais e dos jogos online, as TVs foram sendo colocadas em segundo plano e o próprio conceito TV, onde você passivamente assiste a algo que alguém decidiu o conteúdo e quando seria apresentado, já não faz sentido para as crianças de hoje. E nos últimos tempos, com a internet e as redes sociais disponibilizando múltiplas e interessantíssimas ofertas individualizadas, a sala de estar foi se esvaziando, ficando cada membro da família entretido e sozinho, em seu pequeno universo particular.

Da mesma forma, nossa relação com dinheiro tem sido gradativamente transformada, tornando-se cada vez mais sutil e gerando impactos de ordem pessoal, profissional e organizacional. Aquilo que chamamos de dinheiro, que um dia já foram moedas de ouro e prata, foi transformado em cédulas de papel, depois em cartões de plástico (de crédito ou débito) e hoje é somente algo virtual, podendo a carteira estar vazia. Podemos fazer as compras usando o celular e aprovando a transação com o olhar, pelo reconhecimento da íris, ou seja, o dinheiro efetivamente virou uma informação, uma série de dados formulados por um algoritmo.

E há também as chamadas criptomoedas, algo que de tão sutil, não sabemos se de fato têm algum valor.  Lemos com perplexidade que a Bitcoin, primeira moeda digital descentralizada da história, ou seja, que independe do banco central de um país, teve uma enorme desvalorização em 2018 causando perdas bilionárias para seus investidores. Mas, que valor tem uma unidade de Bitcoin? O que determina o valor num mundo infra sensorial?

Num âmbito mais pessoal, há 20 anos pude testemunhar que algo significativo estava ocorrendo. Um de meus filhos, então com 8 anos estava fazendo aniversário e organizamos uma festa. Ele ganhou vários presentes, mas nada o empolgou tanto como um CD de um novo jogo. Todos os demais brinquedos foram simplesmente ignorados, ficando ele ansioso para instalar e mergulhar no universo virtual que aquele software trazia. Desde então, o fenômeno dos jogos tem se desenvolvido de modo inimaginável, tendo conquistado um enorme número de adeptos, muitos dos quais parecem preferir esse mundo virtual ao real. Sou sócio de um clube onde a sala de jogos pela web costuma, ultimamente, ter mais jovens do que as quadras de esporte.

É fato que a virtualização veio para ficar e trouxe uma série de benefícios, mas uma também igualmente série de preocupações. Que bom não ter que carregar dinheiro, mas e se para onde eu for não houver sinal de celular? Ou mais trágico, e se houver um crash sistêmico e nossas poupanças evaporarem? Com a crise de 2008 se diz que houve perdas de US$ 15 a US$ 22 trilhões o  que parece ser ínfimo quando comparado aos cerca de US$ 1,2 quatrilhão que o sistema financeiro internacional estima que valha o mercado de derivativos cuja maioria da população não consegue sequer entender do que se trata.*3 O problema se traduz  nos ganhos e perdas ligados a esses ativos virtuais que são decorrentes de especulação cujos benefícios efetivos para a sociedade são de difícil mensuração com o agravante de que quando há alguma crise os que perdem normalmente não são os mesmos que anteriormente ganharam, levando a graus cada vez maiores de concentração de renda.

*3 Para se ter uma ideia do que esses valores representam quando comparados à economia real, o PIB brasileiro de 2017 foi de cerca de US$ 2 trilhões e o volume total de dólares em circulação informado em setembro/18 pelo FED – banco central americano – é de US$ 1,6 trilhão.

A sutilização transformando as empresas

No mundo empresarial também houve um enorme avanço do sutil, o que pode ser constatado na impressionante transformação no ranking das empresas mais valiosas do planeta. Aquelas tradicionais, com suas incríveis e grandiosas plantas e fábricas, foram superadas por outras que praticamente não têm ativos físicos. Ao invés de bens duráveis, os produtos são oferecidos pela web e seus ativos são códigos de programa, plataformas e marketplaces digitais, modelos de negócios e, principalmente, suas marcas. Segmentos inteiros, como o da fotografia e das livrarias, sofreram um tsunami. Outros, como o das telecomunicações, do comércio (atacado e varejo), do cinema, dos taxis e da hospedagem estão tendo de se reinventar. E há diversos sob ameaça latente, como o de serviços financeiros que têm nas fintechs o potencial de revolucionar, por meio da desintermediação, o modo como entendemos banking.

Ao investirem para atuarem no mercado virtual as empresas se dão conta do quão diferente e volátil ele é. É como se tivessem que aprender a caminhar em um novo meio, agora não mais sólido, mas ora aquoso, ora vaporoso. Estão reaprendendo a como

conquistar e manter seus clientes e a como lidar com outras empresas que ora podem ser parceiros, ora podem ser competidores. Competidores, aliás, que nunca se sabe de onde os novos virão, pois eles podem já ser conhecidos, mas podem ser uma nova tecnologia desenvolvida no outro lado da Terra, ou um gigante tecnológico que entrou em seu território.

Outro exemplo, é o da virtualização dos recursos de TI por meio do uso da computação em nuvem, o que tem trazido ganhos fantásticos em termos de produtividade e agilidade para as organizações, mas, ao mesmo tempo, as levou a ficarem absolutamente dependentes de outras empresas em processos essenciais, e a serem alvos de ataques para os quais não sabem ao certo como se defenderem, como os feitos pelos hackers, piratas modernos, que atuam de modo criminoso e se especializaram em buscar brechas para invadir os bancos de dados e roubar informações sigilosas.

Diante de tal cenário, se tornou impossível que somente alguns altos executivos zelem pelo futuro da empresa. Hoje todos têm que estar alertas aos sinais de que algo está mudando, pois caso isso aconteça a rapidez e a capacidade de reação podem ser determinantes para o futuro do negócio, o que só será possível se houver um alto grau de engajamento dos integrantes da organização. Mas a maior parte das empresas continua na expectativa (inconsciente) de que um dia e de forma mágica, tudo voltará a ser como foi antes. Que a alta direção da empresa saberá liderar a todos e dará conta do recado. Que se trabalharem bastante e de forma disciplinada atravessarão esse mar revolto. E essa é uma aposta de alto risco…

 

Percepção do espiritual e suas consequências

O termo espiritualidade carrega um sem número de significados. Pode ser definido como uma “propensão humana a buscar significado para a vida por meio de conceitos que transcendem o tangível, à procura de um sentido de conexão com algo maior que si próprio”. Ou ainda como sendo “valores e significados mais profundos pelos quais as pessoas vivem”. Nesse artigo, ao considerarmos o que é supra sensorial como sendo espiritual, estamos dizendo que nessa dimensão há aquilo que é sutil, sendo sentido, percebido e vivenciado pelos homens, mas ao mesmo tempo, não sendo fruto da criação humana.

Cada objeto criado pelo homem, antes de existir no plano real ou no virtual, existia enquanto uma ideia. Mas, de onde veem nossas ideias, nossos sentimentos, nossas vontades? Há os que creem que eles são somente decorrentes de processos bioquímicos, mas o que faz com que haja uma coerência entre tais processos, dia após dia, e que nos dá a sensação de que existe um Eu que os articula a cada manhã? Que consciência é essa que atua como um fator organizador e que cuida do todo?

Nós humanos temos características extremamente complexas e sofisticadas que são inerentes ao nosso próprio ser e com eles criamos o que nos cerca. Vivemos dentro de um determinado contexto, o que no idioma alemão, é chamado de Zeitgeist e que pode ser traduzido como “espírito da época”, “o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época” o que evidencia que as criações humanas não são aleatórias ou simplesmente invenções individuais, na medida em que ocorrem de modo simultâneo em diferentes partes da Terra. Assim, a virtualização faz parte do nosso atual Zeitgeist e por isso afeta a todos no mundo todo.

No livro “Sapiens – Uma breve história da humanidadede Yuval Noah Harari, o autor descreve que a cerca de 70 mil anos houve uma “Revolução Cognitiva” que fez com que nossa espécie, Homo Sapiens, se diferenciasse dos demais hominídeos, como a dos Homo Eructus, Homo Neandertal etc. O livro considera tal revolução como um acontecimento cuja explicação não é conhecida, que nos possibilitou ter a capacidade de nos comunicarmos de um modo mais complexo e com isso criar estórias e mitos. Passamos a ter a capacidade de pensar, de comunicar ideias e de articular um grande número de pessoas, o que permitiu à nossa espécie desenvolver tecnologias, habilidades de organização e uma visão ampliada quanto às possibilidades do mundo, nos dando um diferencial determinante na Terra. Mesmo sendo fisicamente mais fracos, com tal capacidade de criação e de articulação, pudemos suplantar todas as demais espécies.

 

Antroposofia

Ao se trabalhar no âmbito da chamada espiritualidade o grande desafio se manifesta na falta de elementos científicos de análise, o que abre espaço para o misticismo e a ignorância, campos propícios para os aventureiros e os deslumbrados. Daí a proposta de Rudolf Steiner para a estruturação de uma ciência espiritual, a qual ele denominou de Antroposofia, que simultaneamente pudesse ampliar o conceito de ciência e criar uma metodologia para se lidar com o supra sensorial. Não é, e nem pretende ser, a única abordagem, mas por ser bem estruturada tem possibilitado que seja crescentemente empregada em todo o mundo nos diversos segmentos da vida real, como nos âmbitos escolar (pedagogia Waldorf),   médico, odontológico,  psicológico,  farmacêutico (Weleda) e em diversas atividades artísticas. No âmbito financeiro há na Europa o Triodos Bank e no Brasil e América Latina a Rede Dinheiro e Consciência. E há várias iniciativas ligadas ao desenvolvimento humano e organizacional, sendo a Adigo a pioneira no Brasil e o EcoSocial, entidade do qual sou membro, expoentes no atendimento em consultoria e coaching a várias de nossas maiores empresas, seguradoras e bancos.

Há diversas correntes de pensamento, dentre elas a Antroposofia (ver quadro ao lado), que consideram que essas tão relevantes capacidades humanas são sutis e de ordem supra sensoriais, ou seja, espiritual e não física. Para tais correntes não é plausível considerar que o desenvolvimento do cosmos, do mundo e da humanidade seja fruto do acaso. Como diz Joan Melé, pensar que a geração de uma flor, de um gato ou de um ser humano é fruto da combinação aleatória de moléculas é o mesmo que imaginar que livros como “Dom Quixote”, “Dom Casmurro” ou “Os Irmãos Karamazov”, seriam possíveis pela também aleatória combinação de letras que, jogadas para o ar, magicamente, comporiam tais clássicos da literatura. Ou, ao escrevermos randomicamente uma série de números e letras, formaríamos em algum momento o código fonte de algo como o Windows. Sabemos que não é assim e que toda e qualquer obra humana tem uma intenção por trás, que foi concluída após muita dedicação e esforço. Por trás de toda criação há um criador. Mas o homem, ao se desconectar do supra sensorial, passou a crer que aquilo que foi criado, e que ele não consegue entender, como sendo uma casualidade derivada de infinitas e aleatórias tentativas e erros de uma entidade chamada natureza. Isso, no limite, levou muitos a crer que vivemos num mundo onde tudo existe “por acaso”, não havendo, além da humana, uma inteligência maior que ordene e estruture tudo. Somente o homem, por ser criador e povoar o mundo com seus objetos e abstrações, teria a capacidade da intencionalidade.

Tal percepção, onde o que impera é o acaso, acarreta numa série de implicações éticas e a própria vida humana torna-se fortuita. Deixa-se de buscar a compreensão do próprio propósito de nossas vidas, o motivo para o qual estamos aqui. Os valores passam a ser de ordem utilitária, somente aplicáveis caso tragam benefícios, levando a uma ruptura entre os direitos e os deveres individuais. O assombroso número de casos de corrupção que temos tido ciência nos últimos anos em nosso país é um subproduto dessa visão utilitária na qual estamos aqui para maximizar o prazer possível, para nos servirmos do bom e do belo que a vida nos oferece. E esse fim justifica os meios, sejam eles quais forem. Assim, os que se pensam mais espertos não titubeiam diante de uma oportunidade de se dar bem, mesmo que isso se dê às custas do bem-estar dos demais.

Felizmente, tais “espertos”, que causam grandes danos à sociedade, são uma minoria. A maioria esmagadora carrega em si um senso moral. Algo que pode ser nomeado das mais diversas maneiras e que independe de crenças religiosas. Há muitas pessoas que sentem a necessidade de ter uma vida baseada em valores, de estar em paz consigo mesmo, de fazer o bem e cuidar do nosso planeta. Creio que, paradoxalmente, há muitos ateus corretos e honestos que são, na prática, mais espiritualizados do que outros que se dizem religiosos, pois mais importante do que aquilo que se pensa e se diz é o que se sente e se faz.

Muitos querem compreender a vida numa perspectiva ampliada, mas para isso as religiões (com poucas exceções) estão sendo de pouca ajuda para quem as buscam. Numa forma antiga de viver bastava ir aos domingos a uma igreja e fazer uma breve oração à noite para estar em dia com seus compromissos espirituais. O que se fazia no trabalho era outro departamento. Se fosse ético ou não, isso era circunstancial. Diante dessa incoerência e da superficialidade com que o espiritual tem sido abordado as pessoas foram gradativamente se afastando das tradições religiosas e com elas, seus filhos.

Há hoje um número crescente de pessoas que são religiosas, mas não tem uma religião, que querem integrar o espiritual em suas vidas não mais como um ritual e sim como uma prática diária. E o melhor local para isso é o próprio trabalho. Mais e mais pessoas querem viver com o fruto de um trabalho que seja percebido como tendo um sentido, um propósito e que, ao mesmo tempo, seja produtivo e economicamente rentável e social e ambientalmente responsável. É difícil? Sim, é. Mas qualquer solução menor que essa nos manterá muito aquém do que podemos ser.

Da mesma forma, se uma empresa for percebida como sendo algo fortuito, que sua razão de existir é somente a geração de resultados de curto prazo, isso levará à atração de profissionais com esses mesmos valores que serão pouco comprometidos com sua perenidade, na medida em que formarão vínculos frágeis e utilitários com a organização, o que fatalmente comprometerá o seu futuro.

Uma empresa para atuar de uma forma mais consciente não precisa ser de nenhum tipo especial. O que importa não é necessariamente o que ela faz, mas sim o como e principalmente o por que e para que ela faz. Estando esses últimos pontos claros, todos os colaboradores poderão atuar de um modo mais integrado. Movimentos como o do Sistema B e o do Capitalismo Consciente têm atraído empresas relevantes e se expandido pelo mundo por justamente evidenciarem que a conciliação de lucro com uma atuação responsável e consciente é possível, e projetam que num futuro próximo não haverá outra forma de se empreender que seja socialmente aceita e que não tenha esse firme compromisso.

O espiritual está permanentemente presente nas empresas, por exemplo, em seus valores. Independentemente de serem considerados sadios ou não eles irão reger o modo como a empresa é gerida. Mas, além dos valores, o que mais numa empresa seria espiritual? O próprio impulso que o empreendedor sente para a criação de um negócio, a intuição para escolher os rumos, a inspiração para contagiar os colaboradores e a imaginação para elaborar soluções originais e autênticas, tudo isso é de natureza espiritual. E, como veremos, o desafio de quem atua na esfera da Governança é manter tal conexão para que a empresa não se desintegre no futuro.

A famosa frase de Einstein diz que: “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Assim, diante de tantas e tão rápidas mudanças que estão ocorrendo no mundo, o desafio é conseguir integrar o sutil com o denso, o espiritual com o sensorial e com o virtual, renovando o modo como compreendemos e administramos as empresas e acolhendo a demanda daqueles que buscam no trabalho um propósito para suas vidas.

Os aspectos espirituais, por terem uma natureza perene, podem trazer respostas para se lidar com a crescente volatilidade do ambiente. Já os aspectos virtuais são essenciais para se operar num mundo altamente tecnológico, para que possamos geri-las de uma forma nova e mais fluída. Integrando ambos, possibilitará que se tenha as devidas realizações no mundo concreto a partir de propósitos claros e de maneira mais efetiva, participativa e criativa, ou seja, quanto mais o mundo se torna virtual mais relevante se torna o espiritual.

 

Diferença entre amizade real e virtual: a importância dos vínculos

Carl Jung, bem como Rudolf Steiner, já nos havia descrito como sendo próprio do desenvolvimento humano o processo de individualização *4 no qual o aumento da consciência de si leva um indivíduo a se perceber único, diferenciado dos demais. Há nesse estágio de desenvolvimento tanto luz quanto sombra. O que vemos hoje em termos de tecnologia com os smartphones é a oferta de um instrumento para esse estágio, daí eles terem se tornado algo imprescindível em nossas vidas. O genial pode ser visto na possibilidade de cada smartphone ter uma configuração única para o atendimento das necessidades e características de seu dono. Os amigos, aplicativos, mensagens, fotos, músicas etc que estão nele são escolhas e retratam o mundo de cada usuário. Se por um lado isso é fantástico, por outro, corre-se o risco de se viver de modo egoísta e “isolado” do mundo externo. De tão sedutor vemos pessoas em restaurantes que ao invés de falarem com os amigos ao lado, se comunicam com os que estão online. E, ainda mais grave, o vício de constantemente checar se há algo novo acontecendo tem nos privado de espaços de silêncio, de tempo para pararmos e pensarmos. Sem silêncio e pausas é muito difícil se ter conversas mais íntimas e profundas o que tornam mais frágeis os vínculos de amizade. Tem-se centenas ou milhares de amigos virtuais, mas ninguém para ter uma conversa mais profunda e verdadeira.

*4 Carl Jung chama esse processo de Individuação no qual a consciência de um indivíduo se diferencia, se tornando uma totalidade, uma unidade autônoma e indivisível.

No âmbito das organizações tais circunstâncias ficam agravadas com o processo de home office, que é em si uma ótima inovação, principalmente para quem vive nas grandes cidades. Mas se esse processo não for bem gerenciado ficam reduzidas as oportunidades para conversas criativas quanto ao que pode ser o futuro, em como atender às demandas dos clientes e do mundo. Ao fragilizarem os vínculos de confiança ficam prejudicadas as relações, que podem se tornar cada vez mais utilitárias, e com elas o trabalho colaborativo. Reduz-se também o sentimento de pertencimento e o compromisso de mais longo prazo com a empresa.

Diante de tal cenário, desde os níveis superiores, os gestores ficam tão preocupados com as suas metas de curto prazo, pois elas tem alto impacto na manutenção de suas próprias posições, que acabam cuidando pouco de uma de suas principais responsabilidades que é o desenvolvimento de suas equipes e a formação de sucessores. Tal prática vai se cascateando para os níveis abaixo e cria um círculo vicioso de imediatismo, agitação, fragmentação e baixa produtividade. Cada um focado em suas tarefas, se comunicando por WhatsApp e com baixa compreensão do todo.

Num momento de instabilidade e de relações voláteis é de grande importância compreender quais vínculos devem ser cultivados para que a equipe de colaboradores esteja devidamente engajada. Cultivar os vínculos e valorizar a nobreza e o significado de formar os mais jovens faz com que essa consciência esteja presente em todas as ações praticadas pela empresa nas relações com seu time e, ajudará a criar e manter um ambiente propício para a contínua renovação da organização.

 

Qual o papel da governança?

Assim como na sociedade é uma atribuição dos empresários gerar riqueza, cabendo ao governo zelar para que haja um ambiente de negócios propício, no caso das empresas cabe ao corpo executivo, no âmbito da gestão, zelar pela geração de valor da empresa para seus stakeholders e cabe aos órgãos de governança cuidar para que esses executivos tenham as diretrizes e as devidas condições, alertas e apoios para que o espírito empreendedor possa se manifestar devidamente. Empreendendo, é claro, segundo as regras de compliance, assumindo riscos de forma responsável e transparente e submetendo todo trabalho aos órgãos de auditoria e controle.

O Conselho de Administração (CA) tem em seus membros os representantes do capital cujo desafio é de, ao mesmo tempo, zelar pelos interesses dos acionistas, mas ter o olhar para o todo, sendo guardião da saúde da organização, de sua perpetuação e de seu valor no mercado. Por estar fora da pressão do dia a dia do negócio, deve buscar identificar qual a melhor estrutura de capital para o futuro de empresa, capital não só financeiro como também intelectual e social, sendo esses últimos mais relevantes numa economia do conhecimento. É importante que se façam perguntas como: “Como estão as relações entre os sócios?”, “Existe um alinhamento mínimo sobre como veem o futuro do negócio?”, “Deve-se buscar novos sócios estratégicos para o negócio?”, “Os gestores estão conseguindo captar as principais tendências do mercado?”, “A empresa tem conseguido atrair jovens talentosos?” e “Tem sido uma prática a busca de parceiros estratégicos?”.

O CA deve também checar como está fluindo o poder na organização. Como estão as relações entre os sócios e os gestores? Há limites claros que estão sendo respeitados? Os processos decisórios estão sendo permanentemente aprimorados em todos os níveis e a delegação está sendo praticada efetivamente? Se o poder estiver estagnado em algum dos níveis hierárquicos dificilmente as efetivas demandas dos clientes, que são captadas pelos colaboradores que estão na base da organização, chegarão aos principais gestores. Esses integrantes localizados na base estão tendo poder de decisão para atender com agilidade aos interesses tanto da empresa como dos clientes? Numa empresa contemporânea é essencial que se envolvam todos os colaboradores deixando claros quais os propósitos e princípios que a todos regem.

Há ainda questões ligadas à cultura que é a mais relevante das instâncias da Governança, mas comumente subestimada. Por ser de ordem tão sutil, pode-se tocar o dia a dia da empresa sem prestar atenção a ela, mas as implicações para o futuro serão enormes e, por vezes, indeléveis. Se definirmos cultura como “o jeito” como se fazem as coisas na empresa, as ações da cúpula estão continuamente comunicando algo sobre qual é a verdadeira cultura vigente, e não aquelas belas palavras que são propagadas ao mundo em ações de marketing. O que é praticado vai afetando, para o bem e para o mal, “o ar que todos respiram”. Um ar limpo e saudável fortalece a saúde, enquanto um ar tóxico, que pode até num primeiro momento estimular a todos, com o tempo pode comprometer o potencial de desenvolvimento. Com a atual e recém adquirida capacidade de processamento de grandes volumes de dados, chamada de big data, pode- se fazer o cruzamento de dados e gerar informações potencialmente preciosas para uma organização, mas elas terão pouca utilidade se não houver uma cultura colaborativa que estimule a troca de insights e a ousadia de propor soluções não convencionais. Assim, não basta fazer altos investimentos em tecnologia e cabe a quem zela pela governança estar atento a qual cultura está sendo forjada.

Os domínios Capital / Poder / Cultura vistos em seus aspectos sutis, como um tripé, precisam estar em equilíbrio para dar sustentação à gestão em sua busca de transformar os propósitos da empresa em realizações concretas.  Esse é necessariamente um equilíbrio dinâmico uma vez que os 3 estão o tempo todo se transformando. Dissonâncias ou influências exageradas repercutirão no cotidiano da organização e precisarão estar sendo ajustadas e, para isso, é preciso ter-se a visão do todo. *5

*5 No livro Quintessência – Integrando Gestão e Governança, Capital, Poder e Cultura são tratados como sendo Forças Estruturantes de uma organização que precisam estar em permanente equilíbrio.

O CA deveria ainda dedicar tempo a olhar para como o propósito da empresa deverá ser expresso no futuro, indo além do que se faz hoje, sem pressupor que o futuro seja uma continuidade do que se foi no passado. O risco hoje se apresenta quando os membros do CA se ocupam em demasia comas questões ligadas a gestão e compliance e não cuidam do vir a ser da organização. Tratar do futuro exige coragem e ousadia, pois se está entrando no terreno do incerto, mas cada vez mais relevante. Caberá ao CA assumir o papel do empreendedor ao sonhar com a abertura de novos horizontes para a empresa.

Empresários bem-sucedidos normalmente, e de modo intuitivo, têm a capacidade de transformar o seu feeling em ações concretas. Essa capacidade, que pode ser desenvolvida e expandida, é essencial para quem quer ofertar para o mercado produtos e serviços diferenciados. A célebre frase de Steve Jobs retrata a forma como ele operava: “Não faz parte do trabalho do consumidor descobrir o que ele quer. Não dá para sair perguntando às pessoas qual é a próxima grande coisa que elas querem. Henry Ford disse que, se tivesse questionado seus clientes sobre o que queriam, a resposta seria um cavalo mais rápido”. Quer dizer, os empresários que se diferenciam, a partir de uma alta capacidade de observação, intuem as necessidades dos clientes. Isso os inspira a buscar formas de atendê-los. E os leva a imaginar soluções, sendo que muitas vezes ficam nesse estado imaginativo por prolongados períodos. Da mesma forma, no atual contexto, será preciso que os membros do CA possam ir além do pensar cotidiano e busquem atuar na esfera espiritual da Intuição / Inspiração / Imaginação. Essas qualidades, tão essenciais como pouco exercitadas, serão ainda mais requeridas no futuro. Para desenvolvê-las será preciso criar novas formas de observação, de espaços de silêncio, de escuta profunda para se ter possibilidade de diálogos mais significativos.*6 E para os membros do CA o desafio é aprender a fazer isso juntos.

*6 Há hoje inúmeras universidades americanas e europeias tendo a prática de meditação como uma das disciplinas oferecidas aos seus alunos.

O atuar tradicional dos membros dos CA é tipicamente individual.  Quanto mais o conselho é composto por figuras ilustres, maior é o seu partilhar de percepções e opiniões e menor o seu construir de soluções em conjunto. São grupos que muitas vezes parecem ignorar que fazem parte de algo que pode, potencialmente, ser um time. Assim, o desafio consiste em como reunir o conhecimento e a experiência dos membros do conselho, tanto internos como externos, para sonharem juntos esses futuros possíveis? Temos hoje realizado trabalhos de team coaching*7 que ajudam os membros do CA a operar como um time e não como um agrupamento de individualidades. Com um bom trabalho em conjunto, que traga alinhamento quanto ao propósito daquele CA e o que ele deve realizar para atender às necessidades daquela organização, as reuniões se tornam muito mais produtivas, desafiadoras e, até mesmo, mais divertidas. E os insights gerados passam a ser muito inspiradores para todo o corpo de gestores da organização.

*7 Já há no Brasil, nos programas de pós graduação de uma universidade de ponta, a disciplina prática de team coaching para que os alunos desenvolvam suas habilidades de trabalho em grupo e para elas serem percebidas como essenciais num mundo que opera crescentemente em rede.

Duas experiências extremas ajudam a entender como podem se desenvolver as relações entre um CEO e seu Conselho de Administração. Em uma delas, de cunho mais formal, as reuniões de conselho eram burocráticas e tensas e cada conselheiro atuava principalmente para representar os interesses de curto prazo dos sócios que o haviam indicado. A interação entre os conselheiros era pobre e pouco colaborativa, focada em questões do presente ou do passado. Como os resultados não iam bem, as reuniões eram mais de justificativas e manobras de proteção de cada conselheiro, do que olhando para os interesses da empresa. Após um período a empresa acabou sendo adquirida por um concorrente.

Já a outra experiência mostra um CEO que teve a oportunidade de atuar com grande sinergia com o CA. Enquanto no primeiro caso havia uma enorme sensação de solidão, no segundo havia a percepção de parceria com os conselheiros, onde a partir de um genuíno interesse pela saúde e pelo futuro da empresa, as responsabilidades pelas decisões críticas eram compartilhadas e se podia assumir mais riscos na medida em que eles eram melhor debatidos e ponderados. Para a construção da relação desse segundo caso, dois fatores foram relevantes. A maior proximidade dos conselheiros, pois havia reuniões quinzenais e, em momentos mais críticos, até mesmo semanais.  Houve um trabalho, com ajuda de um coach externo, que trouxe um aumento no grau de confiança, transparência e alinhamento entre os conselheiros, aspectos esses de natureza espiritual. Todos esses aspectos permitiram grande agilidade à empresa e uma significativa melhora nos resultados em um mercado altamente dinâmico e competitivo.

 

Conclusão

Como vimos a virtualização a que estamos todos submetidos veio para ficar, trazendo aspectos de luz e de sombra. Para amplificar a luz, sem ficarmos deslumbrados, assim como para mitigar os efeitos da sombra, sem ficarmos tecnofóbicos, será preciso que aprendamos a fazer a gestão e a governança das empresas de uma nova forma. E o novo é o resgate do espiritual, não mais como uma prática religiosa, mas como um modo de atuarmos no mundo a partir de uma compreensão ampliada acerca da realidade.

Se na Governança Corporativa não ocuparmos devidamente o espaço espiritual, mantendo um olhar ampliado para o papel da organização na sociedade, estaremos sujeitos a sermos pautados pelo virtual, por algoritmos, pela inteligência artificial, uma questão que tem gerado preocupação em pessoas como Bill Gates, Stephen Hawking e diversos outros cientistas e pesquisadores. A inteligência artificial pode ser de grande utilidade no âmbito infra sensorial, mas poderá ser trágica se aplicada ao que de mais humano há. Ao longo de nossa história, foi a partir da dimensão espiritual que os homens puderam criar vínculos de confiança, formar tecidos sociais comuns e fortalecer aquilo que nos fez distintos das demais espécies. Se, na dimensão real, perdermos a capacidade de colaboração que nos diferenciou; na dimensão virtual seremos levados a um tal grau de individualismo que ficaremos fragmentados e isolados.

Da mesma forma, é de natureza espiritual a identidade de uma empresa e se ela não for cultivada corre-se o risco de sua descaracterização, da perda de sua alma, o que fatalmente a tornará indistinta das demais tornando-a apenas mais um objeto de compra e venda no mercado de ações. Cabe à governança o papel de, a partir dessa identidade, cuidar para que estejam sendo forjados fortes vínculos entre a empresa e seus principais stakeholders, pois não há política de compliance que dê sustentação caso os padrões de moralidade e ética não estejam vivos e sendo praticados na organização. “Não é suficiente apenas agir dentro da legalidade, é necessário mostrar aos stakeholders da organização o comprometimento de todos dentro da empresa em atender às normas internas e externas. O compliance deve ser algo inerente da companhia, pois assim é possível alcançar todos os benefícios de práticas transparentes, como maior credibilidade dos clientes, melhora da governança corporativa, além de ser importante para a construção da imagem da marca e confiança dos clientes.”*8 Os recentes e impressionantes casos de corrupção que temos assistidos em nossa sociedade, tanto no âmbito das empresas privadas como nas públicas (muitas delas com bem elaboradas políticas de compliance), reforça a necessidade de que a prática da gestão esteja conectada a uma consciência ampliada e de que os valores apresentados estejam sendo usados como guias para a atuação diária.

*8 Thomson Reuters – Por que o compliance é um dos maiores desafios da última década para as empresas?

Muitas empresas têm hoje para seus executivos ambientes tóxicos, com altíssima pressão causada por metas superdimensionadas a serem entregues e equipes enxutíssimas e inexperientes para fazerem a entrega. O que mantém as pessoas nessas organizações é muitas vezes a expectativa (às vezes ilusória) de receberem polpudos bônus,  o medo de não encontrarem algo melhor, o desencanto por crerem que o mundo corporativo é mesmo pouco saudável, a esperança de que tudo isso passará um dia, ou, pior ainda, a acomodação cínica de quem vende seu trabalho e age como um sobrevivente.

Como coach atendo diariamente profissionais altamente qualificados que relatam casos assim. Recentemente, um alto executivo de uma multinacional decidiu pedir demissão da empresa em que atuava há vários anos por não mais suportar a pressão que sentia e o ambiente em que vivia. Chegou a um ponto de sentir crises de pânico ao se aproximar do prédio onde trabalhava. O caso dele se repete em inúmeras organizações, fato corroborado pelo altíssimo consumo de remédios “tarja preta” registrado no Brasil, ou seja, o modelo que hoje está consolidado está se aproximando de seu limite e não será por meio da virtualização das relações que isso poderá ser sanado.

Para Frédéric Laloux, autor do instigante livro “Reinventando as Organizações”*9, empresas que operam a partir de um propósito maior têm a possibilidade de irem além do medo hoje predominante. Segundo ele as empresas são geridas conforme o grau de consciência de seus integrantes, em especial de seus líderes. Quando numa organização os mais conscientes passam a compreender as empresas como organismos vivos eles buscam alcançar soluções duradouras que gerem resultados, que tragam benefícios a todos stakeholders e não apenas para um pequeno grupo de gestores e acionistas. Em sua pesquisa ele encontrou em diversos países empresas bem-sucedidas que conseguem, simultaneamente, ter um claro propósito evolutivo que as guie, uma forma de gestão participativa e um ambiente que permita que as pessoas sejam autênticas, criativas e atuem na sua integralidade. Essas empresas, por terem encontrado um posicionamento único e peculiar, não podem ser imitadas, mas podem servir de inspiração para novas formas de gestão e governança.

 

*9 Frederic Laloux Reinventando as Organizações. Um Guia Para Criar Organizações Inspiradas no Próximo Estágio da Consciência Humana, São Paulo, Editora Voo, 2017

Ao desenvolvermos um olhar supra sensorial para a realidade podemos integrar Governança e Espiritualidade, vendo as empresas como sendo organismos vivos que estão inseridos em algo maior, que tendo ambientes saudáveis e propósitos com significado, possam gerar resultados robustos e consistentes e possibilitar que seus integrantes se desenvolvam tanto no aspecto pessoal quanto no profissional e atuem de forma criativa, articulada e responsável. Ambientes que estimulem o protagonismo, de modo que as oportunidades e os desafios que o futuro e a virtualização nos trarão possam ser superados em conjunto, valorizando as relações humanas e contribuindo para toda a sociedade.

Rubens Gimael

Rubens Gimael

Autor, palestrante, consultor organizacional e coach de executivos. Graduado em Administração de Empresas pela FGV-SP e em Psicologia pela UNESP/UNIP, com pós-graduação em Finanças pela PUC-RJ. Em processo contínuo de desenvolvimento fez também a Formação para Conselheiro de Administração pelo IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa); Coaching in the Corporate Context pela SECA (USA) e Co-Active Coaching pelo The Coaches Training Institute (USA). Há 21 anos trabalha no desenvolvimento de executivos e de empresas, tendo sido executivo de bancos de investimentos e diretor de empresas de TV a Cabo. Atua desde 2005 pelo EcoSocial, atendendo empresas nacionais e multinacionais de diversos setores. É também membro do IBGC, professor do Insper e autor do livro Quintessência, integrando Gestão e Governança.

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